185 - Mais um 25 de abril
Quando anunciei o tema desta semana, esqueci-me por completo de que calharia no chamado Dia da Liberdade – uma pequena explicação, com o tipo de trabalho que faço, raramente tenho a agenda aberta no dia atual, chega a estar uma semana ou mais à frente, daí eu ser muitas vezes apanhada desprevenida ao ver a data em que realmente estamos.
Se houver interesse, também nos anos anteriores falei desta data em Não à liberdade, E viva o 25 de Abril e O 25 de Abril. Infelizmente, muito do que ali digo ainda é tão pertinente – ou mais – do que quando o escrevi.
Os festejos deste ano tiveram a complicação adicional dos três dias de luto pelo Papa. E, muito francamente, acho que com as eleições legislativas a menos de um mês desta data, discursos e cerimónias deviam ter sido reduzidos o mais possível em vez de se tornarem mais uma ocasião para propaganda eleitoral mais ou menos encapotada – apesar de eu supor que muitos já não se dão sequer ao trabalho de ouvir sempre as mesmas coisas, o combate pela liberdade e a luta contra o fascismo, etc., da boca de partidos e pessoas que mostram, sobejamente, não respeitarem o direito à livre expressão de ideias, entre outras coisas.
A Europa em geral corre, cada vez mais, o risco de perder a liberdade de expressão, só que, desta vez, com o pretexto do “respeito pelos outros” que, bem entendido, não retribuem esse sentimento e fazem, até, os possíveis, para nos impor as suas ideias e normas. E Portugal, embora um bocadinho mais tarde do que a maioria, está a começar a alinhar pela mesma cartilha.
As universidades, por exemplo, seguindo o exemplo das suas congéneres americanas, restringem cada vez mais a livre troca de ideias e deixaram de ser – ou estão a caminho disso – locais onde os jovens possam ter contacto com uma grande variedade de opiniões, aprendendo a analisá-las e combatê-las, caso não concordem com elas. Não, com o tal pretexto de não ofender, só se convidam oradores que encaixem em determinados parâmetros e tenta-se, também, o mais possível, eliminar professores que desagradem a certos grupinhos de alunos. É essa a liberdade de abril?
Temos, também, as mulheres. Já há zonas das grandes cidades onde não podem circular livremente sob risco de serem assediadas ou, até, violadas. E aumentam as pressões para que estas se vistam e se comportem de modo a “não ofender” as mentalidades de imigrantes, muitos deles ilegais, que aqui se instalaram e se sentem à vontade para agirem como muito bem entendem. E com mais de uma geração criada no pós-ditadura, não é estranho que a violência doméstica persista, pior ainda, atinja níveis elevadíssimos até mesmo entre os mais jovens? É essa a tão apregoada liberdade que as mulheres conquistaram com o 25 de abril?
Passando à democracia, começam, finalmente, a surgir cada vez mais artigos que demonstram a distorção que o nosso sistema eleitoral aplica aos votos angariados e que favorece, claramente, os grandes partidos. Diga-se de passagem que, com exceção da Madeira e dos Açores, nunca entendi a existência de círculos eleitorais em Portugal para as eleições legislativas, assunto a que voltarei noutro post.
Lembro, também, as tentativas recentes para dificultar a presença de candidatos independentes em eleições autárquicas, isto numa altura em que são cada vez mais numerosos e apreciados pelos eleitores, sem esquecer os também cada vez mais frequentes partidos locais. Segundo parece, a sua existência “fere” a democracia, tradução, os grandes partidos querem continuar a ser os únicos a mandar neste país. E é essa a liberdade de abril?
É, agora, a vez da comunicação social, a tal que tanto sofreu com a ditadura e que pôde, após o 25 de abril, ser livre e isenta. Mas é-o mesmo? Veja-se a campanha eleitoral – ou antes, a pré-campanha – que está a decorrer e o modo como os vários partidos e os seus dirigentes são tratados por ela. A uns, tudo se perdoa, tudo se justifica. A outros, bom, o que rende é empolar o mais possível tudo o que possa ser visto como mau, distorcendo, até, os factos ou ignorando-os. E é essa a liberdade de abril?
Mas penso que o que mais me incomoda na celebração desta data está nos seus mitos e na perpetuação dos ditos. Sim, a ditadura foi péssima, sem dúvida, e muitos sofreram imenso com ela. Apesar de não deixar de ser curioso que os que mais a denunciam defendam comportamentos piores nas chamadas “ditaduras do povo”. Lembro-me de um escritor que, numa entrevista, dedicou imenso tempo a falar do lápis azul da censura e como lhe cortavam muito do que escrevia. Só que, mais adiante, disse ser compreensível a então URSS enviar escritores para o Gulag ou para asilos de loucos porque “eram inimigos do estado”.
Para terminar, deixo aqui o meu desejo neste Dia da Liberdade. Gostaria imenso ver, antes de morrer, alguém a escrever a história factual dos primeiros anos após o 25 de abril, sem lentes cor de rosa, citando nomes e factos e o muito de mal que foi então feito em nome do povo. Mas, atendendo ao modo como a censura atual, cada vez menos encoberta, alastra e sobe de tom, suponho que terei muito que esperar!
Para a semana: Falemos de novo da mulher À luz de acontecimentos recentes, é altura de voltar a este tema
