43 - A infância é mesmo para brincar?
Ouve-se muito dizer, “a infância é para brincar” e outras expressões similares. Só que quando falamos em brincar, referimo-nos a atividades de puro lazer, a, basicamente, não fazer considerado útil. Ou seja, em tempo perdido.
Mas brincar não é isso. Para a maioria dos animais, incluindo os humanos, é uma parte crucial da infância, ajudando a desenvolver o cérebro e sistema nervoso, para além da imaginação, da capacidade de resolução de problemas, da criatividade e também competências sociais. É, pois, uma aprendizagem para a vida.
Se pensarmos nos jogos e brincadeiras tradicionais, vemos que, sem dar conta disso, a criança desenvolvia destreza física – os muitos jogos envolvendo o uso de uma bola, corridas, etc. – que lhe viriam a ser úteis mais tarde. Desenvolviam também a criação de laços entre grupos de crianças de aproximadamente a mesma faixa etária, que iam aprendendo – mais uma vez sem darem conta disso – modos de resolverem problemas e tensões, por exemplo.
E se olharmos para os brinquedos até meados do século passado, não é por acaso que se davam bonecas às raparigas e armas, ferramentas e coisas similares aos rapazes. Também aqui, a brincadeira servia de preparação para os seus futuros papéis na sociedade.
Nos últimos anos, todo este conceito sofreu uma tremenda alteração, com o enfoque a passar de “atividades” para “coisas”. Ou seja, até meados do século XX, brincar envolvia ações, com ou sem a ajuda de acessórios, digamos. Mas hoje em dia, o termo brincar é imediatamente associado a brinquedos e jogos de computador ou similares, enfim, a objetos.
A diferença fundamental é que antes, para brincarem, as crianças eram forçadas a dar asas à sua imaginação, a inventar histórias e cenários. A mesma espada de pau (ou um mero pau a fazer a vez dela) passava alegremente de arma de pirata à de cavaleiro medieval ou outro personagem imaginado no momento. Sem equipamentos ou brinquedos complexos, as crianças improvisavam, criavam as suas próprias regras e jogos, enfim, agiam.
Mas, atualmente, damos-lhes cenários já totalmente estruturados, sejam sob a forma de videojogos ou de brinquedos complexos, o que leva que cada vez menos criem os seus próprios cenários, por total falta de necessidade de o fazerem.
Mais ainda, há cada vez mais a ideia de que sim, brincar serve de aprendizagem, só que, em vez de comportamentos e capacidades sociais como tinha sido até agora, tentamos ensinar coisas “úteis”. Até nos infantários há os grupos organizados, a hora de brincar com brinquedos considerados adequados à idade, a hora de pintar, a hora das histórias, bom, tudo muito bem planeado e estruturado “a bem da criança”.
Há um espaço e tempo para este tempo de aprendizagem, sem dúvida, mas o principal ganho para a criança de brincar de modo não estruturado era a aquisição da chamada autorregulação, que é muitíssimo importante para o desenvolvimento eficaz em quase todos os domínios.
E o que é a autorregulação? Pois bem, é a capacidade de conseguirmos controlar as nossas emoções e comportamentos. Há especialistas que pensam até que é um fator bem mais importante para o futuro sucesso de uma criança do que o seu IQ.
O chamado “faz de conta” é um modo importantíssimo de a desenvolver, mas, atenção, se vier da criança e não de um adulto, por muito bem intencionado que este seja. Por outras palavras, tem de ser a criança a decidir o que vai fazer e como, a definir o universo onde vai entrar e as regras da sua brincadeira.
Infelizmente, a chamada “brincadeira livre” está em vias de extinção, entre atividades desportivas, artísticas e outras e jogos em que tudo foi previsto, a criança pouco usa a sua imaginação, não precisa, já tem a papa toda feita.
Pior ainda, surgiu a ideia de que se deve proteger a criança de tudo o que possa ser demasiado difícil para ela. Temos, pois, joguinhos adaptados à sua idade, livros com um vocabulário restrito consoante a faixa etária a que se destinam, jogos e brincadeiras em que todos ganham, enfim, um nunca acabar de soluções que impeçam a pobre criancinha de ter de se esforçar a sério para resolver um problema ou, pior ainda, a ter de enfrentar o terrível desgosto de perder.
Sabiam que nos EUA e também em Inglaterra há listas de palavras “autorizadas” consoante a faixa etária dos possíveis leitores de um livro? Curiosamente, quando J. K. Rowling se tornou o êxito que todos conhecemos, deitou essas regras janela fora e escreveu como muito bem quis. Comparem os dois primeiros livros Harry Potter, escritos antes do seu tremendo sucesso, com os restantes e verão bem isso. E sabem que mais? Em vez de ficarem traumatizadas por encontrarem palavras “difíceis” e centenas de páginas um livro, as crianças devoraram-nos.
Sabiam também que até bem recentemente, muitos dos que agora consideramos jogos infantis também eram jogados por adultos? E não me refiro a jogos de tabuleiro, tipo Monopólio ou puzzles, mas sim a “jogos de recreio” como a cabra-cega ou as escondidas. Portanto, ao jogá-los, as crianças estavam muito simplesmente a imitar o comportamento dos adultos com quem viviam.
Resumindo as ideias que aqui tentei exprimir, faríamos bem mais pelo bem-estar futuro das crianças se em vez de lhes organizarmos tanto o seu tempo, se em vez de jogos em que só têm de seguir as regras com que já vêm e brinquedos cada vez mais complexos e simultaneamente tão limitadores da imaginação lhes déssemos mais tempo livre para desenvolverem as suas próprias brincadeiras e se habituarem a usar a sua imaginação.
Entre um jogo de construção com centenas de peças em que só têm de seguir o plano de montagem incluído na embalagem ou um simples pacote de blocos que podem juntar como quiserem, demos preferência a estes. Escolhamos puzzles e outros jogos com uma idade recomendada superior para que aprendam a ter perseverança face a algumas dificuldades. Ou seja, em vez de receberem tudo já feito, demos-lhes, isso sim, desafios. Acreditem, ser-lhes-á extremamente benéfico e nada se compara à sensação de orgulho sentida por uma criança quando consegue fazer algo acima da sua idade.
Mas cuidado, nada tão avançado que se torne uma atividade impossível, levando a frustração e ao sentimento de não ser capaz de fazer nada. Como em tudo o mais, tudo isto deve ser feito tendo em conta a criança concreta.
E sim, sei que os tempos mudaram e que há imensa pressão para ter o jogo ou o brinquedo “que todos têm”, mas quem disse que educar é fácil? Sei também que as brincadeiras ao ar livre tal como existiam até meados do século XX são agora impossíveis por razões de segurança, mas que tal deixar os seus filhos ou as crianças a seu cargo deambularem à vontade num jardim ou parque – bom, só aparentemente, claro – em vez de só os levar até lá para atividades específicas como andar de bicicleta ou praticar uma atividade desportiva?
Infelizmente, suspeito que a menos que se comece com crianças muito novinhas, será preciso dar-lhes um pequeno empurrão para as levar nesta direção, tarefa nada fácil para pais e educadores que também passaram pela brincadeira focada em coisas e não em simples atividades.
Para a semana: Jornalismo ou jornalixo? – Os jornalistas apregoam-se como os defensores da verdade, mas sê-lo-ão mesmo?
