38 - Eutanásia salvará o SNS?
Assistimos recentemente à aprovação na Assembleia da República da chamada Lei da Eutanásia, com a habitual confusão à mistura, de ambos os lados do tema.
Começo por dizer que sou totalmente contra a eutanásia e totalmente a favor da morte medicamente assistida. É que, ao contrário do que se ouve por aí, os dois conceitos não representam a mesma coisa, como expliquei no meu post Os falsos sinónimos.
Resumidamente, a morte medicamente assistida tem lugar quando uma pessoa está gravemente doente e em sofrimento, a ponto de a medicamentação de a medicamentação só funcionar a níveis que a deixam inconsciente a maior parte do tempo e pouco lúcida no restante. A eutanásia tem lugar quando a pessoa se acha em sofrimento físico ou psicológico e decide que não quer continuar a viver, mas por uma razão ou por outra não quer ou não pode pôr fim à sua vida.
Como exemplo, há uns anos houve inúmeros casos de pessoas com SIDA que pediram a eutanásia, e que a conseguiram legal ou ilegalmente, por não aguentarem saber que tinham os dias contados e que os passariam em grande sofrimento. O problema é que pouco depois houve grandes evoluções na área médica e, se não tivessem recorrido à dita, teriam tido uma vida longa e em bom estado de saúde.
Sei que retiraram do texto a expressão “doença mortal” que era, no mínimo, absurda. Sem contar que nascer é uma doença mortal, o que é que isso significa? Se me diagnosticam com um tipo de cancro com alta taxa de mortalidade, posso ir a correr pedir a eutanásia ainda antes de sentir sintomas graves? É que muito francamente, ouvindo os argumentos a favor desta lei posso concluir que a vida é minha e que tenho todo o direito de querer evitar o sofrimento.
Não tenho a menor dúvida de que muitas pessoas sofrem, fisicamente ou não, e desejam a morte como solução para esse sofrimento. E agora mais do que nunca, nesta sociedade que andamos a criar e onde se tenta quase “proibir” que se sofra, seja de que modo for. Mas se analisarmos bem a questão vemos que em muitas dessas situações esse sofrimento poderia ser muito minorado tomando algumas medidas.
Não me refiro apenas aos cuidados paliativos, que são escassíssimos e sem grande garantia de qualidade. Falo também da atitude da sociedade em geral e das famílias em particular perante pessoas com doenças permanentes, idosos a perderem capacidades, etc. Quantas vezes ouvimos dizer, “aquilo nem é vida nem é nada, se fosse eu, preferia morrer”? E acham que as pessoas a quem se referem não o ouviram centenas de vezes?
Outra expressão muito usada é, “não quero ser um fardo para ninguém”. Mas, porquê um fardo? É que muitas situações dessas derivam não da incapacidade da pessoa para cuidar de si mas da total falta de apoios que aliviem um pouco a tarefa de quem as tem a seu cargo.
É muito bonito ouvir dizer que a eutanásia só pode ser pedida por alguém com mais de 18 anos, são de espírito e consciente do seu pedido e depois de uma opinião médica. Ou seja, esperamos anos por uma cirurgia, meses por uma consulta de rotina, mas se for para a eutanásia já é rápido? E já agora, será que os autores da lei pensaram nas pressões, conscientes ou não, que familiares e amigos exercem sobre quem sofre de determinadas doenças ou incapacidades e que os levam a achar a morte preferível à sua situação atual?
Um exemplo muito usado é de pessoas com paralisia total e que vivem há anos totalmente dependentes de terceiros. Em vez de as lastimarmos e de lhes acenarmos com a eutanásia como saída airosa dessa vida monótona, não seria melhor dedicarmos recursos e ideias a tornarmos a sua existência mais plena e rica? Os meios existem, veja-se o caso do Stephen Hawkins – ora aqui está um bom candidato à eutanásia, em vez da cadeira sofisticada e do computador que podia manipular com os olhos, pois bem, deixe-se numa cama ou num cadeirão o dia todo sem qualquer controlo sobre o que faz ou vê!
E as crianças? Curiosamente, ninguém fala nisso. Sim, menores de 18 anos não podem pedir a eutanásia, mas nada se diz sobre pais a pedirem para os filhos que nascem com problemas graves, dos tais que ouvimos dizer “mais valia não ter nascido” ou algo similar. Sabem, aquelas situações em que se ouve muito falar na qualidade de vida, ou falta dela, etc.
A questão é que também aqui as coisas têm evoluído muito. Veja-se o caso da paralisia cerebral. Até há uns anos, pensava-se que essas crianças sofriam de um imenso atraso mental – veja-se o filme australiano de 1984 Annie's Coming Out - Uma razão para viver. Veio-se depois a descobrir que muitas têm uma inteligência normal, estão é presas num corpo que não reage da maneira certa. E que com fisioterapia e cuidados especiais, muitas tinham uma longa e útil vida pela frente, não sendo pois as “coitadinhas” que diziam.
O problema disto tudo é que soluções custam dinheiro e recursos ao passo que o recurso à eutanásia tem o efeito oposto, poupa-se muito em tratamentos, cuidados, etc. Parece cru? Sim, mas não deixa de ser verdade, sobretudo com um SNS como o nosso, sobrecarregado, a rebentar financeiramente, que nem as pessoas normalmente saudáveis consegue assistir quando têm algum problema, muito menos quem precise de cuidados especiais continuados e, na maior parte das vezes, de custo elevado.
E há outro aspeto de que ninguém fala, é que a triste realidade desta nossa sociedade facilitista é que o grande objetivo da maioria é, como disse acima, evitar todo o sofrimento, seja de que tipo for. Hoje em dia, sofrer é como pecar na Idade Média, algo vergonhoso que não queremos para nós e a que nos incomoda imenso assistir. E por isso, em vez de minorarmos o sofrimento ou, muito simplesmente, aprendermos a viver com um certo nível dele e desfrutar à mesma da vida, preferimos acabar com tudo.
Já agora, recomendo a leitura do artigo de Jaime Nogueira Pinto no Observador intitulado À falta de vida boa, a boa morte (cortesia do Estado): https://observador.pt/opiniao/a-falta-de-vida-boa-a-boa-morte-cortesia-do-estado/
Uma última nota, sou uma fervorosa adepta de uma boa morte e de a pessoa a poder escolher livremente. Mas a eutanásia não é a resposta. Se quiserem saber mais sobre o assunto, leiam o post da próxima semana, Viver bem para morrer bem.
Para a semana: Viver bem para morrer bem – tratar a morte como o que nunca devia ter deixado de ser, uma parte integral de viver