Novo Dicionário Precisa-se, Parte 3
Hoje vou continuar a falar de algumas palavras e expressões que, ou têm agora um “novo” significado ou têm sempre, implícita ou explicitamente um “rider”, ou seja, um “cláusula adicional” que lhes altera o sentido – sabem, como naqueles contratos em que adoramos uma alínea e depois vemos em letras pequenas “apenas se...” ou algo desse género que a invalida ou, no mínimo, lhe deturpa o sentido.
E para quem não leu a primeira parte, uso neste post a sigla DDV, Donos da Verdade, os criadores ou utilizadores assíduos deste novo dicionário e com quem é de muitíssimo mau tom discordar – ao fim e ao cabo, a verdade é só uma e uma apenas e é a que eles decidem que é.
Comecemos, pois.
Justiça social
Procurando a sua definição, vemos que o conceito de justiça social parte do princípio de que todos os membros de uma sociedade têm direitos e deveres iguais em todos os aspetos da vida social. Ou seja todos os direitos básicos, como a saúde, educação, justiça, trabalho e manifestação cultural, devem ser garantidos a todos.
E eu não podia estar mais de acordo, sobretudo com a parte de termos todos direitos e deveres iguais. No fundo, é a célebre frase de Marx (sim, Marx!) que segundo parece o nosso PM citou recentemente na Assembleia da República: “De cada um, de acordo com as suas capacidades; a cada um, de acordo com as suas necessidades.”
Note-se que nesta frase Marx começa pelos deveres e só depois fala nos direitos. Estranho, não é? Bom, pelo menos para os DDV que pululam na nossa sociedade. É que para eles a frase resume-se a “a cada um, de acordo com as suas necessidades.” Pior ainda, nem é de acordo com as necessidades, é todos terem direito às mesmas coisas, quer sejam ou não necessidades, quer trabalhem ou não para elas.
E chegamos à maravilhosa aceção atual deste conceito em que é considerada justiça social que uma pessoa que trabalha, que estuda, que se esforça, seja obrigada a sustentar indefinidamente membros da sociedade que são totalmente capazes de fazerem pela vida, isto se quiserem, claro. E porque o hão de querer, se sem mexerem uma palha têm as tais necessidades básicas cobertas e com o bónus inestimável de se poderem considerar uns coitadinhos e vítimas da injustiça social, exigindo sempre mais e mais?
Termino com uma frase que tirei da página do Observatório sobre crises e alternativas (o sublinhado é meu):
“Numa sociedade onde haja justiça social, os direitos humanos encontram-se assegurados e as classes sociais mais desfavorecidas contam com oportunidades de desenvolvimento.”
Pois, oportunidades, não dádivas.
Ditadura
De acordo com o dicionário, uma ditadura é a “concentração dos poderes do Estado numa só pessoa, num partido único, num grupo ou numa classe que o exerce com autoridade absoluta.”
E a aceção moderna, o tal “rider” de que falo na introdução? Pois bem, falta acrescentar o seguinte: “desde que essa pessoa, partido, grupo ou classe não pertençam à esfera política correta.”
Não acreditam? Vamos a exemplos.
Os 40 anos de ditadura de Salazar, que continuam a ser citados como desculpa para tudo e mais alguma coisa. Mas Fidel Castro foi primeiro-ministro de Cuba de 1959 a 1976 e presidente de 1976 a 2008, ou seja, quase 50 anos. Governou em regime de partido único, os opositores, reais ou imaginários, eram presos e/ou feitos desaparecer, as eleições tinham uma característica fantástica, 100 % de votantes ( e todos nele ou nos seus candidatos, claro) – ou seja, nunca ninguém estava doente no dia da votação ou morrera perto da data, sem possibilidade de se alterarem os cadernos eleitorais. Mas ditador? Nem pensar! Era um bom democrata que governava para bem do povo e em nome deste.
Podíamos também falar da China e do seu partido único no poder desde que Mão conquistou o poder. Ou na Rússia, onde Putin e o seu primeiro-ministro andam há anos a trocar de cargos para contornarem a lei de limitação de mandatos. Ou no Chávez, tão adorado pelos nossos DDV, que pura e simplesmente alterou a Constituição da Venezuela para se manter indefinidamente no poder.
Mas não são ditadores, é claro. O termo fica reservado para o atual líder da Polónia, por exemplo, apesar de ter saído de uma eleição com múltiplos partidos. Ou para o Berlusconi... Enfim, entendem certamente o que quero dizer.
Fake News
E para terminar, lembram-se do projeto europeu imediatamente elogiado pelo no primeiro-ministro DDV de criação de um organismos para impedir a disseminação das chamadas “fake news”?
Para começar, a proposta é extremamente paternalista, os “paizinhos” DDV a protegerem os burros dos não DDV de tudo o que possa ser “falso”.
E porquê falso entre aspas? Vejamos, quem decide o que é uma fake news? Pois, adivinharam, uma comissão totalmente constituída por gente DDV!
Querem um exemplo? No início da pandemia Covid o Trump disse que a hidroxicloroquina era boa a tratar os sintomas do vírus. Como era o Trump, foi logo considerada fake news e denunciada, entre outros, pela OMS – bom, haveria todo um post sobre a atuação deste organismo na pandemia. Uns meses depois, pasme-se, a mesma OMS veio dizer que, afinal (!) até era eficaz. Ora como a dita custava uns cêntimos e a sua patente já tinha caducado e os dois medicamentos recomendados custavam um balúrdio, isso levou ao disparo do número dos chamados negacionistas.
Quem é que aqui foi culpado de fake news?
É que o problema é precisamente esse. Se alguém cai no desagrado do grupo de iluminados que controla o que se pode ou não dizer, tudo o que se possa inventar sobre essa pessoa é válido. E tudo o que a dita pessoa disser é, claro, fake news.
Curiosamente, ou talvez não, os que mais berram pela liberdade de expressão são os maiores entusiastas deste tipo de comissões. Vá-se lá saber porquê...
Para a semana: Bizarrias da política portuguesa – pequenas questões que me intrigam há bastante tempo.
