9 - Novo Dicionário Precisa-se - Parte 1
Hoje irei falar de algumas palavras e expressões que, ou têm agora um “novo” significado ou têm sempre, implícita ou explicitamente um “rider”, ou seja, um “cláusula adicional” que lhes o sentido – sabem, como naqueles contratos em que adoramos uma alínea e depois vemos em letras pequenas “apenas se...” ou algo desse género que a invalida ou, no mínimo, lhe deturpa o sentido.
E também para uso neste post teremos a sigla DDV, Donos da Verdade, os criadores ou utilizadores assíduos deste novo dicionário e com quem é de muitíssimo mau tom discordar – ao fim e ao cabo, a verdade é só uma e uma apenas e é a que eles decidem que é.
Comecemos, pois.
Censura
Consultando o dicionário, encontramos, entre outras conotações deste termo, a seguinte: exame crítico de obras, espetáculos ou publicações segundo critérios morais ou políticos e exercício do poder de autorizar ou não a sua exposição ou publicação.
Temos passado anos a ouvir falar na censura no tempo de Salazar, por isso devíamos estar bem familiarizados com o que é. Ouvimos falar também do fim da dita censura, seria pois de esperar que ela tivesse mesmo acabado.
Pois... é um daqueles casos em que entra o “rider” que mencionei acima. Vejamos um exemplo. Há uns anos, em França, um livro foi proibido e o autor multado pesadamente porque, a certa altura, um dos personagens, nem sequer o principal, dizia, “Fico feliz quando morre um muçulmano”. Mas pelos vistos há um livro, muito citado por esse senhor Mamadou, que diz, “devemos matar todos os brancos”. Mas não pode ser proibido, porque isso seria “censura”.
Resumindo, se o conteúdo de uma obra, etc., está dentro da ideologia aceite pelos DDV, proibir ou simplesmente coartar a sua divulgação é censura. Mas se o dito conteúdo for do desagrado desses senhores, então essa proibição ou coartação já não é censura, é um ato altamente moral para proteção do povo!
Democracia
De acordo com o dicionário, é um “sistema político em que a autoridade emana do conjunto de cidadãos, baseando-se nos princípios de igualdade e liberdade”.
Tudo bem, dirão, é assim mesmo. Pois é, mas lá vem o tal “rider”, que diz, muito simplesmente, “desde que a escolha dos cidadãos recaia numa opção que os DDV considerem democrática”.
Ou seja, basicamente, as coisas processam-se assim. Se o resultado de uma eleição agrada aos ditos, “viva a democracia”. Se não for do seu agrado, ou, pior ainda, se lhes desagrada, “o povo é estúpido e não sabe o que faz”. Acho que temos todos em mente exemplos recentes desta tão democrática atitude.
Lembram-se da célebre frase “o povo é quem mais ordena”? Pois bem, é, na realidade, “o povo é quem mais ordena desde que aquilo que ordena seja do pleno agrado dos DDV, caso contrário, azar!”
Igualdade
Outro termo muito na moda. Voltemos ao dicionário: princípio de organização social segundo o qual todos os indivíduos devem ter os mesmos direitos, deveres, privilégios e oportunidades (o sublinhado é meu).
Um belíssimo princípio, com o qual concordo totalmente. Mas é esta a definição usada pelos DDV?
Em termos de direitos e privilégios, é claro que sim. Aliás passam a vida a criar normas e similares para os imporem, pelo menos teoricamente. No caso da “igualdade de oportunidades”, bom, falam muito disso, mas de um modo tal que se fica com a ideia de que não se estão a referir à sociedade atual mas sim à de uns anos atrás – ignoram, na prática, o poderosíssimo uso que se pode fazer da internet e das novas tecnologias para melhorar esse acesso a oportunidades.
Mas quando chegamos aos deveres, aí é que se estraga tudo. É que para DDV que se prezem, resume-se tudo a direitos, os deveres, esses, são só para alguns. Pior ainda, quando os sobrecarregados de deveres se lembram de protestar e de exigir uma verdadeira igualdade, pois bem, basta dizer que isso não é mesmo nada bem recebido.
Liberdade de expressão
Penso que dispensa uma definição, todos sabemos o que é. Ou antes, todos pensamos saber o que é... Mas tal como no caso da censura, há um senão, é que depende muito do que se diz.
Vamos a um exemplo. Há uns anos houve uma célebre caricatura do Papa da época com um preservativo no nariz. Houve indignação (pacífica e educada) de grupos católicos e o senhor Mário Soares disse, pomposamente, “Se não gostam, azar, é a liberdade de expressão” (estou a parafrasear). Mas quando foram os protestos (violentíssimos, com mortes e muita destruição) por causa das caricaturas de Maomé, o mesmo senhor Mário Soares disse, a respeito dos seus autores e da revista que as publicou, “Deviam ter tido em conta as sensibilidades religiosas das pessoas”.
Trabalhador
Usando novamente o dicionário, o seu significado é “aquele que trabalha”.
Mas se ouvirmos os DDV, a definição correta é, “aquele que tem um contrato coletivo de trabalho e/ou pertence a um sindicato”.
Ou seja, trabalhadores por conta própria, os que estão em pequenas e médias empresas, os que até estão em grandes empresas mas sem contrato coletivo, bom, azar, não são trabalhadores, são só uns papalvos que se esforçam, pagam impostos (de que uma boa percentagem vai para pagar os “verdadeiros” trabalhadores) e veem o seu dia-a-dia continuamente prejudicado pelos “eleitos”.
Até mesmo os ditos precários não nasceram iguais, quando se fala em acabar com a precariedade é sempre no sentido não de terem um contrato de trabalho permanente mas sim de terem o tipo de contrato “certo”.
Como o título indica, há muito mais termos e expressões a incluir, mas que ficarão para outra vez. Mas façam um pequeno exercício, da próxima vez que estejam a ver (ou a ler) notícias, prestem atenção ao uso das palavras e, sobretudo, ao modo como são boas ou más consoante a cor política a que se aplicam.
Para a semana: O pecado ignorado – e que todos nós cometemos.
